“DEMOCRACIA RACIAL” E A NEGAÇAO DA LITERATURA NEGRA

Há uma questão que se deve ter em mente ao abordarmos nosso tema. Seguramente, você já se deparou em alguma disciplina deste curso, ou mesmo anteriormente, com uma ideia que impregna nossa mentalidade, nosso inconsciente coletivo: a “democracia racial”. Tal ideia não nasceu da noite para o dia. 
De fato, começa a ser gestada anteriormente à Abolição (1888), quando a escravidão no Brasil era tida como mais “doce e cristãmente humana” do que a de outros países como os EUA (FERNANDES, 1978, p. 254). 
Essa visão era compartilhada por brasileiros e, sobretudo, por viajantes europeus, surpresos de aqui se encontrarem um considerável número de “mulatos” livres, influentes, ocupando cargos de destaque na sociedade imperial. A famí- lia do conselheiro Antonio Pereira Rebouças, filho de uma escrava e de um alfaiate português, pai dos engenheiros Antonio e André Rebouças, formam um bom exemplo de “afrodescendentes” posicionados no alto da hierarquia social do Segundo Reinado, e no circulo próximo do próprio Imperador. Conforme aponta o sociólogo Florestan Fernandes, importante estudioso da condição dos negros e das relações raciais no Brasil, se durante o regime escravista, fundado na desigualdade, a discriminação e o preconceito de cor permitiam manter as distâncias sociais, após a Abolição e a República, persistiam razões de ordem psicossocial, legal e moral que impediam a efetiva igualdade ou uma real transformação dos antigos modelos de relações raciais no Brasil.
 A sociedade branca colocava o paternalismo de sempre à disposição dos negros, desde que esses não se comportassem como “agitadores” ou “contestadores”, ou seja, desde que não escapassem do controle dos brancos. Apesar dos efeitos perniciosos dessa atitude, segundo Fernandes, não havia exatamente uma “intenção explícita” de prejudicar os negros, porém, essas atitudes não afloravam à consciência social (Idem, p. 252). Talvez por aí se explique a opinião bastante frequente, entre os brasileiros brancos, ou seja, “o preconceito contra o preconceito de ter preconceito”, na certeira formulação de Florestan Fernandes (SCHWARCZ, 2005-6, p. 173). 
Em outras palavras, se ninguém é “racista”, o país não o é. Continuando, a ideia de democracia racial reforçar-se-á nos anos 1930, período fértil em trabalhos que buscavam interpretar e explicar a identidade e a cultura brasileira. Casa Grande & Senzala (1933), obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, sustenta que o convívio e a proximidade física reduziram as diferenças e suavizaram as relações entre senhores e escravos. Disseminou-se, então, a crença de que no Brasil as raças formadoras de sua população conviviam harmoniosamente. A prova disso seria o alto grau de miscigenação entre índios, negros e brancos que dava uma feição e moldava a identidade do povo brasileiro, leConselheiro Antonio Pereira Rebouças (1798-1880) Eng° Antonio P. Rebouças Filho (1839-1874) Eng° André P. Rebouças (1838-1898) 4 Módulo 2 - Fundamentos histórico-culturais - conteúdos específicos vando à ausência do preconceito, do racismo e dos ódios raciais diferentemente do que então ocorria no regime segregacionista norte-americano e, mais tarde, no apartheid sul-africano, este último instituído em 1948
. A afortunada obra de Freyre tranquilizou muitos brasileiros, irritou parte deles, e seduziu o público estrangeiro que ainda hoje, em grande parte, acredita encontrar-se ali uma chave para compreender o Brasil e a miscigenada sociedade brasileira. Nos anos 1970, Florestan Fernandes, autor da obra seminal A integração do negro na sociedade de classes, contrapôs-se às conclusões de Freyre: para o sociólogo paulista, o “mito” da democracia racial atribuiu as misérias da população “de cor” a sua exclusiva incapacidade e irresponsabilidade, aliviando a consciência dos brancos. 
Além de gerar uma falsa ideia da realidade racial brasileira, o mito da democracia racial, alimentou algumas convicções etnocêntricas, dentre elas “a ideia de que o Negro não tem problema no Brasil”, de que “graças à natureza do povo brasileiro, não existem distinções raciais entre nós”; de que “as chances de enriquecimento, prestígio social e de poder estiveram acessíveis a todos sem distinção”; de que “o Negro está satisfeito com sua situação e seu modo de vida”; e, por fim, a de que todos os problemas de justiça social foram resolvidos no momento da abolição” (Fernandes, 1978, vol. I, p. 256). Seja como for, toda uma vertente da literatura brasileira, em geral produzida por autores brancos como Jorge Amado, para citar apenas um nome bastante conhecido, não apenas abraçou como celebrou a nossa mistura étnica, imortalizando personagens como a “mulata” Gabriela, do célebre romance Gabriela, Cravo e Canela (1958). A par da literatura, encontramos exemplos desse mesmo fenômeno nas artes plásticas, como a tela O mestiço (1934), de Cândido Portinari, ou as mulatas retratadas em inúmeros quadros de Di Cavalcanti. C. Portinari. Mestiço. Óleo sobre t

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