RACISMO E COTIDIANO ESCOLAR

 Como eu me vejo, como sou vista: identidade e corpo Quando a criança negra inicia o seu processo de socialização na escola a sua primeira descoberta está ligada ao seu corpo. 
Um corpo que revela o seu “defeito de cor”2 . A partir daí o movimento de se reconhecer e ser reconhecida passa pela rejeição desse corpo negro. 
A não aceitação das crianças negras se manifesta nos olhares, gestos, afetos e “brincadeiras”, assim como, nos conteúdos escolares e nas relações interpessoais. A beleza, a inteligência, a educação, a docilidade são atribuídos ao sujeito branco, tornando- -se em ideais a serem alcançados por muitos alunos e alunas negras. Isso, no entanto, implica negar a si próprio e a perseguir o seu corpo.
 Nesse sentido, Costa argumenta quão o racismo se mostra violento e perverso ao impingir o ideal de embranquecimento como algo positivo.
 O corpo negro se torna uma clausura de sofrimento, vigília e autopunição ao invés de ser “fonte de prazer” e libertação (COSTA, 1986). Com essa imagem corporal distorcida, a identidade da criança se constrói no desejo de ser o outro, o branco, criando representações psíquicas ligadas à morte e à dor. 2 O termo foi cunhado no período colonial dentro do contexto das leis segregracionistas. A condição racial impedia ou não a ocupação de cargos civis, militares e eclesiásticos. Aos negros e mulatos, eram vetados essas funções, permitidas apenas para os brancos. Havia casos, no entanto, em que lhes eram concedidos tais cargos a partir do pedido de “dispensa do defeito de cor”

. Ver: OLIVEIRA, Anderson J. Machado. Suplicando a dispensa do “defeito de cor”: clero secular e estratégias de mobilidade social no Bispado do Rio de Janeiro do século XVIII. In: XIII Encontro de História Anpuh-Rio, disponível em: http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/ content/anais/1212773302_ARQUIVO_Texto-AndersondeOliveira-Anpuh-RJ-2008.pdf. 4 Módulo 1 - 
Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais Para as meninas negras, a marca dessa identificação com a brancura se dá, entre outros aspectos, pela imagem criada sobre os cabelos. As bonecas, os filmes, os livros infantis e as propagandas de beleza reforçam uma estética branca e estigmatizam os cabelos das meninas negras considerados “duros”. 
O desejo compulsivo em alisar ou prender os cabelos podem revelar a relação de sofrimento e de autonegação, conforme indicam as frases abaixo3 : “Eu quero ser como a Ana (se refere à menina branca de cabelos longos e lisos), porque ela parece uma princesa, a barbie!” - Jéssica, 5 anos, negra; “Eu sou branca como essa boneca, só queria ter olhos claros como ela” – Alhine, 7 anos, negra. “Eu não solto o meu cabelo porque ele é ruim, é muito duro e é feio. E depois os meninos ficam falando que eu tenho cabelo de bombril” – Jasmin, 8 anos, negra12 Essas frases extraídas do cotidiano escolar nos levam a refletir sobre algumas representações raciais que estruturam a identidade dessas crianças. Pode-se dizer que a não aceitação de sua condição étnico-racial, do seu corpo, constitui um dos seus pontos estruturantes.
 Entretanto, isso não se dá por uma fantasia criada pela criança, como alguns educadores tentam nos convencer, mas pelos estigmas, discriminações e preconceitos raciais que rondam e se manifestam de formas variadas na escola. A grosso modo, podemos dizer que existem duas formas de discriminar e excluir as crianças negras: as formas veladas e as explícitas. Tais formas, porém, não são estanques, ao contrário, se aproximam criando diferentes combinações. Aqui, propomos pensá-las separadamente apenas como um recurso didático e reflexivo: a) As formas veladas – 
Os preconceitos raciais e as discriminações são sutis, mas poderosos nos seus propósitos, a saber, manter lugares sociais. É possível citar alguns exemplos, tais como: • 
A diferença de tratamento entre crianças brancas e negras. Em uma escola, Maria dizia sempre que a professora não gostava dela. 
A professora, rebatia, dizendo que não sabia por que ela tinha essa ideia fixa. Em uma observação de aula, a diretora atenta a isso descobriu esse desafeto tão reclamado por Maria. Lá estava ele, no olhar carinhoso da professora diante das meninas brancas, no seu gesto afetuoso das carícias aos cabelos dessas meninas e, por fim, nos elogios à letra das meninas brancas. A professora se calava diante de Maria, nenhum elogio, nenhum afeto, apenas indiferença. Depois, em reunião, a diretora comentou essas observações e a professora então se revelou: “- Eu trato Maria com educação e respeito. Ninguém consegue controlar os afetos.” 3 Todos os depoimentos aqui citados foram recolhidos durante os cursos de formação organizados pela ACUBALIN em 2005 e 2011. A ACUBALIN, é uma entidade sem fins lucrativos voltada à práticas de promoção da igualdade racial e diversidade étnico-cultural. Para tanto desenvolve projetos educativos em escolas públicas. Para saber mais sobre a entidade, acesse: www.acubalin.org.br 4 A primeira frase, proferida por Jéssica, liga a menina branca à princesa que na sua fala é descrita como parecida com a Barbie: magra, branca e loira. Ao desejar ser a menina branca, a princesa, Jéssica busca embranquecer-se. 
Já a segunda, Aline, o desejo forte em ser branca parece criar uma fantasia de si própria, se vendo como branca. Isso deve lhe causar muito sofrimento, pois por mais que se chegue a um embranquecimento desejado, a sociedade lembra de forma violenta qual é o seu lugar social e racial. Por último, Jasmin reproduz a imagem social criada sobre o seu cabelo ao dizer que ele é ruim e duro. Também busca minimizar os estigmas que lhe perseguem ao prender os cabelos. As tentativas em se camuflar e ocultar seus traços identitários são perceptíveis aí. 5 Disciplina 3 - Educação, racismo e antirracismo • Isso nos mostra que o silêncio não significa que algo não é dito. Além disso, discordamos com a professora, na medida em que os nossos afetos são sim influenciados por muitos elementos sociais (raciais). • 


Os projetos pedagógicos. 
Em uma escola pública infantil, os professores e alunos desenvolveram um projeto sobre as famílias. Na exposição desse projeto a sala só tinha desenhos e representações de famílias brancas e monogâmicas. Uma mãe negra perguntou a filha: “- Por que você desenhou uma família branca se somos todos negros, filha?” A menina respondeu: “- não sei! A professora contou história da família da branca de neve, cinderela e de João e Maria. – Mãe, todos eram brancos. Também na colagem só achei pessoas brancas e felizes nas revistas. E a nossa família é diferente”. • As brincadeiras e as relações com seus pares. No intervalo de uma escola pública infantil, uma menina ficou isolada olhando para as outras meninas e brincando sozinha. A professora perguntou a ela: “- Greice, por que você não brinca com as outras meninas?”
 A menina respondeu: “- Porque elas não querem, não gostam de mim.” A professora disse: “- claro que gostam, Greice, para de besteira”. – “Não, não gostam. Elas me disseram que sou fedida e muito preta. Isso é coisa da sua cabeça, menina”, disse a professora. Insistindo no caso, ela continua: - “Quer ver? Paulinha, venha cá, por favor. Você não quer brincar com a Greice? - Se ela quiser, professora. - Tá vendo Greice, você inventa coisa, menina?” A falta de escuta para compreender o sentimento de Greice fez com que a professora não resolvesse o conflito, ao contrário, legitimou o agressor e culpou a vítima. Em um conflito há situações interessantes de aprendizagem. Nesse caso, a exclusão racial poderia ser trabalhada de forma coletiva, contribuindo para as relações e convívio entre crianças negras e brancas. Ao invés disso, a professora informou, implicitamente à Greice que ela inventou o racismo e que não se pode falar sobre isso. Acrescenta-se a crueldade das relações raciais no próprio universo infantil, sobretudo, quando utilizam as ofensas raciais para discriminar. Os termos como “fedida” e “preta” acionam os estigmas ligados ao corpo: à cor e à anomalia (higiene). (GUIMARÃES, 2002) • 
O posicionamento dos professores e gestores diante dos conflitos raciais. O posicionamento dos educadores escondem e, ao mesmo tempo, revelam o racismo. As suas posturas diante dos conflitos raciais variam, contudo o silenciamento torna-se a sua marca. Algumas frases emblemáticas, como essas: “parem com isso somos todos humanos”, “todos temos sangue vermelho”, “pare de se lamentar e volta para o seu lugar”, “resolvam vocês essa briga”5 ; nos revelam as dificuldades e, por vezes, desconhecimento dos educadores no enfrentamento do racismo no cotidiano escolar. 5 Outras frases como essas foram analisadas em: SOUZA, Ana Lúcia Silva. “Negritude, letramento e uso da oralidade”. In: Do silencio do lar ao silencio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. Org. CAVALLEIRO, E. São Paulo: Contexto, 2010, p.179-194. 6 Módulo 1 - Aspectos gerais da educação e das relações étnico-raciais b) 
As formas explícitas – Nessas formas, o racismo se manifesta explicitamente enquanto discriminação racial. Podemos elencar: • 
Os insultos racistas: Durante o recreio, no pátio da escola um menino chama a colega de “macaca” e começa a discussão. O inspetor intervém e os leva para a direção. Lá a diretora escuta a versão do inspetor (e não dá voz à vítima) e conclui dizendo aos adolescentes: “olhe, bullyng não é saudável, não se faz isso”. Mas, a vítima insistia que não era bullyng, e, sim, racismo. E a diretora irritada, chama a atenção da vítima, invertendo a situação na seguinte frase: “agora dá para entender, você provoca mesmo”. Os insultos raciais, como bem analisou Guimarães (2002), constituem formas de violência racial, um mecanismo que legitima relações de poder e demarca, assim, as hierarquias sociais/ raciais. Cada ofensa traz em si um estigma, cuja função consiste em levar a vítima a um lugar de inferioridade.
 Guimarães (2002), ao analisar termos injuriosos como “macaco”e “urubu”, argumenta que se o primeiro está ligado à ideia de selvageria e a um estágio quase humano, o segundo se remete ao devorador de restos e lixo. É importante frisar que os insultos raciais carregam intencionalidades (humilhar, excluir e discriminar), assim como demonstram um sentimento de superioridade presente no agressor.
 No caso acima, podemos também analisar a questão de gênero nesse conflito ao envolver um menino branco e uma menina negra. Também nos chama a atenção para aquilo que Munanga Kabenguele (2013) afirma sobre o caráter singular do racismo brasileiro que culpabiliza a vítima e vitimiza o agressor. 

• Violência escolar Ao refletirem sobre o sistema educacional francês Bourdieu; Passeron (1975) encontraram no ambiente escolar um cenário opressivo e marcado pela violência simbólica6 . A violência simbólica, tal como teorizada por esses autores, constitui uma imposição tanto dos valores como da cultura dominantes.

 Dessa forma, de acordo com Bourdieu; Passeron (1975), é a partir da ação pedagógica que se reproduz o poder cultural e social dominantes. Os grupos que não estão inseridos nessa estrutura de poder se sentem excluídos, comprometendo a construção de sua própria identidade. As práticas pedagógicas na instituição escolar, geralmente, difundem visões, valores, saberes que levam os alunos a romperem com o seu universo cultural e social (e étnico-racial). A forma generalizante como a escola apresenta um determinado saber causa estranhamento e exclusão simbólica. Durante muito tempo o movimento negro vem chamando a atenção para esse tipo de violência em que as crianças negras estão sujeitas. Violência essa expressa na dinâmica do cotidiano escolar, bem como na própria estrutura do ensino d

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